Como
você se sente, caro leitor ou leitora, quando recebe a conta do
mecânico? É agradável? Mas será que existe uma razão por trás daqueles
valores assustadores? Será que por trás de um valor salgado não existe
um profissional sério? Ou seria apenas um valor criado por alguém quee
só quer esvaziar o seu bolso?
Hora do mecânico: a eterna desconfiança |
Mecânicos ruins, mal formados ou que agem de má fé existem aos montes. Bons profissionais são raros.
Este é um artigo para tentar explicar por que ocorrem muitas situações conflitantes que cercam a relação cliente-mecânico. Ele talvez seja um grande desafio para muitos, porque vai exigir de cada leitor ou leitora um pouco de autocrítica e visão para perceber muitas situações sutis, vividas e presenciadas por cada um, e até assumir algumas culpas.
Começamos pela coisa mais óbvia: toda oficina mecânica é uma empresa, e como empresa, ela visa lucro. Mas em vez de aceitar esta realidade, o cliente já entra numa oficina de nariz torcido e um pensamento na cabeça: ”Se o mecânico quer lucrar, ele vai me explorar”. Esse é o primeiro passo para uma relação conturbada, difícil. O cliente enxerga no mecânico a imagem do Gérson, que “quer levar vantagem em tudo”, incluindo sobre o próprio cliente.
Porém,
o lucro não é 100% daquilo que o cliente paga para o mecânico. Lucro é
apenas uma pequena fatia sobre o total. Essa fatia é o que sobra depois
que o mecânico descontar o custo total da oficina. Se o lucro do
mecânico for elevado demais, seu preço não fica competitivo e ele perde
clientes, mas se ele for baixo demais, a oficina sucumbe aos próprios
custos e fecha.
Mas
de quanto estamos falando em termos de custo de uma oficina? Cada caso é
um caso, mas com alguns valores apenas para exemplificar já nos mostra
muita coisa.
Vamos considerar uma oficina pequena, com um ajudante, e comecemos pelos custos fixos.
O
galpão da oficina tem o custo do aluguel. Digamos algo como R$ 1.000,00
por mês. Salário do ajudante : R$ 1.000,00/mês. Internet e telefones
fixo e móvel: R$ 300,00. Água: R$ 100,00. Luz: R$ 300,00. Só com poucos
ítens, já somamos fácil um custo de R$ 2.500,00 /mês, mas existem
dezenas de outros para serem somados nessa conta. Destaque especial
sobre os benefícios e encargos sobre a mão de obra dentro da firma, que
podem até superar os próprios salários dos funcionários. Essa conta
sempre fecha bem salgada para o mecânico.
Essa
oficina também tem de comprar ferramentas novas, e elas não são nada
baratas. Só um elevador novo de carros custa na ordem de R$ 4.500,00, e
ele é só uma ferramenta no meio de tantas outras, como chaves de todos
os tipos, ferramentas eletrônicas de diagnóstico, bancadas etc.. E essas
ferramentas não tem apenas o custo da aquisição inicial, mas também tem
custo de manutenção e/ou reparação e de substituição ao final da vida
útil.
Ferramental amplo e de qualidade garante bons serviços, mas tem custo elevado |
Toda oficina que se preza precisa de um carro de serviço. E assim, como o restante do ferramental, ele precisa ser comprado, operado, mantido, reparado e eventualmente substituído. E sabemos que um carro não se compra com dinheiro de pão.
Além
das ferramentas, um bom mecânico hoje precisa estar se reciclando
constantemente, fazendo cursos para entender as novas tecnologias e
saber como reparar os novos modelos de carros. Enquanto treina, ele está
afastado da oficina e não realiza qualquer trabalho útil, só recebendo
se seu ajudante tiver alguma competência. E há o custo do próprio curso.
Todo esse ferramental e os cursos realizados representam um enorme capital que o mecânico imobilizou para poder prestar seus serviços. Todo retorno desse investimento tem que obrigatoriamente vir através dos serviços que ele presta mediante o uso dessas ferramentas.
Cursos: custo duplo para a oficina |
Todo esse ferramental e os cursos realizados representam um enorme capital que o mecânico imobilizou para poder prestar seus serviços. Todo retorno desse investimento tem que obrigatoriamente vir através dos serviços que ele presta mediante o uso dessas ferramentas.
Então há uma margem no preço de cada serviço da oficina para aquisição, manutenção e reposição de ferramental. E ela não é pequena.
Este valor deve ser adicionado ao custo das peças que cada carro sempre demanda.
E sobre todo esse valor líquido, o mecânico tem que calcular os impostos devidos. Em média, os impostos representam 42% do faturamento bruto das empresas. Então o preço bruto do serviço quase dobra sobre o líquido só para pagar os tributos diretos da empresa.
Porém,
num mês médio de 30 dias, o mecânico só abre sua oficina de segunda a
sexta-feira, o que lhe deixa apenas 22 dias para trabalhar e faturar.
Não
vou dar uma aula de como gerir custos ou de tributos neste artigo, mas
quero mostrar algo muito importante com essa explanação.
Uma oficina minimamente bem mantida deve gerar um faturamento bruto entre R$ 700,00 e 1.200,00 por dia que ficar aberta e por carro realmente trabalhado nesse dia para obter um lucro mínimo.
Segundo matéria recente do jornal Folha de São Paulo,
com dados do Sindicato das Empresas de Reparação (Sindirepa) e do
DataFolha, enquanto a hora de um médico em seu consultório sai em media
R$ 45,00, a hora média de mão-de-obra cobrada por uma oficina sai por
volta de R$ 88,00, quase o dobro da do médico. O Sindirepa disponibiliza uma tabela referencial mais completa de hora de mão de obra de reparadores por área de serviço, o que mostra a coerência dos valores mostrados acima.
Se
considerarmos um faturamento bruto médio de R$ 700,00 para uma pequena
oficina que consegue atender apenas um carro que exige um dia inteiro de
trabalho, então falamos num faturamento mensal de R$ 15.400,00 em 22
dias trabalhados.
E todo faturamento da oficina provém do serviço cobrado dos clientes, e é com ele que os custos da oficina são pagos. Portanto, um serviço prestado por uma oficina honesta, sem favores, sempre custará bastante para o cliente.
Um serviço que tome meio dia de serviço nesta oficina deve custar por volta de R$ 350,00 e um bem rápido, algo em torno de R$ 180,00, dependendo das peças necessárias.
Bons serviços em mecânica de automóveis nunca serão baratos |
Estes
são valores básicos bastante realistas que o mecânico tem na cabeça
para fazer seus orçamentos. É um valor salgado para muitos, mas ele se
apóia numa realidade que muitos dos seus clientes assalariados não
conhecem na prática.
A
empresa na qual o cliente do mecânico trabalha recebe um faturamento
bruto, e esse total vai sendo “peneirado”, separando cada parte dos
gastos. Ela separa os impostos, o pagamento dos fornecedores etc.. Uma
dessas separações é o pagamento do seu funcionário. Para ser
economicamente viável, cada funcionário precisa gerar um faturamento
bruto várias vezes maior que o próprio salário por dia trabalhado para
que seu emprego seja justificável para a empresa. Fazendo as contas,
cada funcionário ganha uma migalha bem pequena sobre o faturamento bruto
da sua empresa.
Quando
este funcionário manda seu carro para a oficina, deve arcar com uma
conta que é uma parcela do faturamento bruto da oficina. Isto cria uma
desproporção enorme entre o que ele ganha e o valor da conta que ele
recebe da oficina. Não raras vezes, o mecânico cobra por um serviço
grande de um dia o que o cliente assalariado não ganha em uma semana.
O
cliente normalmente já trabalha com um orçamento doméstico apertado, e
se ele não separar as realidades entre valores líquidos e brutos dos
dois lados, normalmente ele se sentirá explorado ao extremo.
Um
funcionário assalariado só tem de se preocupar em fazer seu serviço e
recebe tranquilamente seu salário no fim do mês. Já o mecânico não tem a
menor garantia que todo dia haverá novos carros entrando pela porta,
nem que haverá momentos em que aparecerão mais carros do que aqueles ele
consiga atender e terá de recusar o serviço, o que também é ruim para o
faturamento.
O mecânico tem de lidar todos os dias com uma margem de risco do negócio que o assalariado nem lembra ou sabe que existe.
Outra
margem de risco é a garantia. Se o mecânico fez um serviço e forneceu
as peças, a garantia é de sua total responsabilidade. Qualquer problema
da peça ou do serviço, o mecânico terá todo trabalho de refazer e
assumir o custo de reposição das peças.
Todos estes riscos vão parar na forma custo na fatura, gerando aqueles valores desconfortáveis para o cliente.
Se
o fluxo de carros na oficina cresce, a estrutura da oficina cresce
junto. Se o fluxo dobra, é preciso dobrar a equipe de mecânicos e
ajudantes para entregar os carros dentro do prazo, e isso vai exigir um
segundo jogo de ferramentas, um galpão maior com aluguel mais caro, os
impostos crescem junto com o faturamento.
Mas
não fica só nisso. A oficina passa a depender de outros recursos
paralelos que também acrescentam custo ao preço final do serviço. Uma
secretária, por exemplo, ajuda muito a manter o trabalho organizado e
facilita contatos com fornecedores, além de manter o mecânico focado em
seu trabalho. Porém, ela não arruma carros, e seu custo vai incidir
sobre o custo-hora de reparo.
Ela é o que chamamos de custo fixo indireto, já que é um custo que não surge diretamente da atividade-fim da oficina, que é a de reparação de carros.
Conforme a oficina cresce e as atividades dentro dela aumentam em número e complexidade, os custos fixos indiretos sobem junto, absorvendo muito do ganho de eficiência que se conseguiria com o aumento da estrutura.
Então,
uma oficina, ao contrário de uma fábrica, não se beneficia tanto do
aumento de trabalho para baixar custos. Não há fatores de escala neste
caso. Seu trabalho continua sendo quase artesanal, um a um, e não dá
para baixar além de certo patamar.
Esta
é a parte lógica, matemática da coisa, e sem a qual nada funciona,
independente de qualquer outra análise. Por isso, agora é que realmente
passaremos a entender quão complexa é a relação entre mecânico e
cliente.
Se
a relação entre mecânico e cliente é tensa pelos valores do serviço,
muitos clientes acham que certos serviços são “muito fáceis” de serem
feitos, mesmo que eles nem tenham ideia de como são realizados, e
subvalorizam o que é feito. É mais um dos pontos que geram desgaste da
relação.
Estas
situações ocorrem rotineiramente em todas as oficinas, obrigando os
mecânicos a tomarem certas táticas de negociação que justifiquem o preço
cobrado.
Aí damos mais um passo da nossa análise, rumo ao problema da psicologia do processo de cobrança e honestidade do mecânico.
Primeiro, vamos pensar em mecânicos híper-honestos. Nosso amigos Juvenal Jorge nos contou uma história que nos serve como bom exemplo de análise.
O
conhecido do Juvenal tinha um problema no sistema de injeção, todos
queriam fazer o serviço ou fornecer uma outra peça a preço de ouro, mas o
mecânico amigo se resignou a tirar a controladora e abri-la. Mesmo sem
conhecimento de eletrônica, diagnosticou um capacitor queimado que
custava R$ 0,70, trocado na loja de reparação de televisores ao lado da
oficina, recuperando a ECU e o preço do serviço ficando por aí
simplesmente.
Vamos
dizer que o mecânico do JJ, não foi só um mecânico boa praça, mas
aquele que todos nós gostaríamos de ter. Porém, se olharmos pelo lado
dele, veremos que nem tudo é tão florido.
Sabemos
que a oficina dele tem de gerar a cada dia um faturamento mínimo para
conseguir fechar o mês com saldo positivo. Se esse mecânico passou o dia
quebrando a cabeça para diagnosticar o problema e no final do dia
encontrou o capacitor, levou para reparar a ECU, a trouxe de volta e a
reinstalou no carro, mas cobrou apenas os R$ 0,70 do capacitor, aquele
dia foi um dia perdido em termos de faturamento para ele.
Para apenas um evento destes no mês para um cliente especial, o mecânico pode até tolerar. Mas se for algo recorrente, para a oficina atingir o faturamento esperado no final do mês, ele terá de jogar o que não faturou neste serviço de cortesia nas costas dos demais clientes que nada têm a ver com o caso. É injusto com os demais clientes, além de tornar o preço da oficina menos competitivo.
Pequenas
cortesias, que não custam muito tempo ou material do mecânico até podem
ser praticadas com certa regularidade. É até bom para os negócios.
Porém, cortesias grandes, como esta do exemplo, devem ser evitadas ao
máximo, e reservadas apenas para os clientes muito especiais em
situações especiais.
O mecânico que abusa das cortesias é o mecânico que vai fechar suas portas em muito pouco tempo.
Daqui
tiramos a primeira lição: o mecânico realmente bom, profissional, não é
o mecânico bonzinho. Existe um limite rígido de atuação para um
profissional do mais alto gabarito, e esse limite diz que ele não pode
ser lesivo, mas também não é o mais benévolo aos olhos do cliente.
O mecânico realmente profissional atende seu cliente estritamente dentro da proporcionalidade da relação que ele mantém com o seu cliente. Nem mais e nem menos que isso.
O
mecânico que adoríamos ter, que quebra todos os nossos galhos sem
cobrar nada, e ainda nos atende com um sorriso no rosto é, antes de mais
nada, um mau profissional. Ao deixar de cobrar o preço justo pelo
serviço, ele vai fechar a oficina em pouco tempo, e vai nos deixar à
mercê dos maus mecânicos.
Isso
nos leva ao segundo tipo de mecânico, o chamado “consciente”. Esse
mecânico é consciente da realidade que o cerca e age de acordo com os
limites que as situações são impostas. Há uma correlação direta entre o
termo "consciente" e "profissional".
Vamos
voltar ao caso contado pelo Juvenal. Imaginemos que o cliente do caso
não seja especial, e, portanto, não receberá tratamento diferenciado. O
mecânico cobrará o que deve ser cobrado.
Se
nos imaginarmos no lugar do cliente, como nos sentiríamos se o mecânico
nos mostrasse que todo problema do carro era uma pecinha miserável, que
custa R$ 0,70, mas no orçamento consta “peças – R$ 0,70; mão de obra –
R$ 700,00”?
É algo fácil de engolir? Sejamos honestos: não é.
Se o cliente ganha R$ 2.800,00 por mês, uma conta de R$ 700,00 equivale ao que ele ganha em uma semana, e esta conta é sobre um serviço de apenas um dia. Essa desproporcionalidade é difícil de compreender se não estivermos preparados para ela. Aceitá-la vai contra os nossos instintos.
Os
orçamentos dos mecânicos recorrentemente escondem uma distorção para
evitar essa situação desfavorável. Normalmente os orçamentos apontam um
custo maior de peças do que de mão de obra. Porém, se o cliente
pesquisar, vai descobrir que as peças são muito mais baratas nas lojas
de autopeças do que as descritas no orçamento. E se o cliente se
oferecer a comprar essas peças por fora verá que o mecânico não vai
gostar da situação.
Alguns
acreditam que essa margem adicional no preço das peças é uma margem de
lucro que o mecânico põe sobre a peça, mas a razão real desse ajuste de
preços é outra.
Quando
o mecânico faz seu serviço, existe um valor mínimo que o justifique,
como nós já vimos. Para tornar o valor do serviço mais “palatável” pelo
cliente, parte deste valor é cobrado sobre peças e descontado da parte
em serviços. O que importa no final é que a soma dos dois seja a mesma.
Há
uma sutil diferença entre serviço e peças que justifica essa
estratégia. Uma peça é um ente material, palpável, e além disso exigiu
muitas transformações desde o minério bruto até a peça acabada. Ela tem
um certo valor e é logicamente compreensível pelo cliente.
Já serviço é algo imaterial, não palpável, pois resume-se a tempo de trabalho. Na mente do cliente é muito mais consistente uma peça cara que ele pode ver e tocar, do que um serviço que o mecânico disse que fez, mas que o cliente não vê e nem faz volume na mão.
- Por que o custo da mão de obra seria R$ 700,00? Por que não R$ 100,00? Afinal gastou-se apenas tempo.
Esse é o pensamento do cliente, que dificilmente compreende que tempo é a matéria-prima básica do mecânico, assim como qualquer prestador de serviços, e que com ele, o mecânico tem de pagar seus custos.
É
por isso que no exemplo do Juvenal ficaria difícil admitir um orçamento
contendo “peças – R$ 0,70; Mão de obra – R$ 700,00”. Se no orçamento
constar “peças – R$ 400,70; mão de obra – R$ 300,00”, a conta final é a
mesma, mas é muito mais aceitável pelo cliente.
Mas
que peças seriam essas que custam R$ 400,70? Seria o capacitor de R$
0,70? Não! São as famosas peças "rebimboca da parafuseta" e a
"princeleta da grampola". Uma mentira puxa outra.
Orçamento: muitas vezes, mera peça ficcional para justificar um valor real |
O mecânico sabe que a honestidade total não seria aceita pelo cliente, e mesmo sendo ele honesto, ele tem que contar uma pequena mentira para receber um pagamento justo pelo seu trabalho.Daí chamá-lo de “consciente”, e não de “honesto”, porque honesto não mente. O mecânico completamente honesto e sincero é aquele que não sobrevive.
As
pequenas mentiras são uma técnica usada pelos mecânicos conscientes
apenas em casos extremos. Na maior parte das vezes eles apenas dizem
meias verdades. Parte dessas meias verdades são ditas quando o mecânico
percebe uma situação mais ampla e complexa, que ele sabe que será cara
para ser completamente reparada.
Se ele for completamente honesto e mostrar tudo o que precisa ser feito de uma vez, ele sabe que o cliente não vai gostar do orçamento. Fazer todo esse serviço também vai contra os interesses do mecânico, pois se for totalmente reparado e ajustado, o carro não retornará à oficina tão cedo, e já sabemos que a oficina tem que faturar um mínimo todos os dias.
Ao
deixar coisas a serem reparadas, ele minimiza o problema naquele
instante para o cliente, garante o retorno próximo do carro para a
oficina e vai reparando as partes em doses homeopáticas, cobrando mão de
obra sobreposta no mesmo sistema. Ele fatura mais, tem serviço
garantido para o futuro, e o cliente aceita melhor a situação.
E ele não necessariamente mentiu sobre a situação. Apenas não contou toda a verdade.
Reparem
que até aqui todos os serviços realizados são de qualidade, e cobrados
por um valor justo. As atitudes ética e moralmente condenáveis e até
ilegais ocorrem quando esta fronteira é ultrapassada.
A
seguir, temos uma mentirinha um pouco maior. As fotos tiradas em
seqüência mostram a instalação de uma arruela no apoio de um dos
parafusos de fixação da dobradiça para eliminar uma folga na porta do
motorista. Apesar do "jeitinho", esse truque não representa um reparo
mal feito ou perigoso.
Reparo de folga de porta com arruela de calço: serviço rápido, fácil e eficiente |
Será que o cliente aceitaria um reparo assim? Que imagem o cliente faria do mecânico se visse um reparo destes? Quanto ele estaria disposto a pagar pelo serviço se o mecânico fosse honesto e mostrasse como foi feito?
Mas, e se o mecânico cobrasse do cliente a troca das duas dobradiças da porta? Seria uma versão mais aceitável pelo cliente? Sim, seria. O cliente testa, comprova que o defeito foi eliminado e no fim aceita a versão do mecânico.
Situações
como estas existem aos montes em oficinas todos os dias, e existem
muitos truques como estes para deixar o carro com perfeito funcionamento
sem gastar peças caras e o precioso tempo do mecânico.
Mas
aí, como se diz popularmente, é o uso do cachimbo que deixa a boca
torta. Uma mentirinha uma vez ou outra para salvar uma situação sem
gerar consequências é até justificável. Porém, é uma possibilidade
tentadora de lucro que leva o mecânico a se tornar um mau mecânico e que
está ao alcance dele a todo instante.
Há dois tipos de maus mecânicos, que se diferenciam pelo preço do serviço que cobram.
Para
o público onde preço baixo de serviço é uma exigência, existem os
mecânicos que cobram muito pouco. São geralmente as oficinas “focinho de
porco” que tem nos bairros. Sujas, mal organizadas, mal instaladas, mal
iluminadas, com ferramental de baixa qualidade e mão de obra com
pouquíssima qualificação.
Eles cobram
bem abaixo dos patamares dos mecânicos conscientes porque eles tem um
custo operacional muito baixo, mas esse baixo preço reflete direto na
qualidade do serviço, muitas vezes improvisado e cheio de gambiarras.
Os "trocadores de peças", por ignorarem a tecnologia por trás dos carros modernos e sem equipamentos de testes, vivem da exaustivos testes de troca de peças, em busca daquela danificada. São incapazes de gerar um diagnóstico e ir diretamente ao defeito. Não raras vezes consomem muitas horas de mão de obra, empurram seguidamente peças desnecessárias e o defeito persiste.
Esses
mecânicos baratos trabalham com preços no limite da mera subsistência, e
são altamente danosos ao mercado de reparação, pois ao oferecerem
serviços por um valor abaixo do mínimo para algo de qualidade, mas
também geram uma base de preço comparativamente injusta com os bons
profissionais. São mecânicos que podem manter sua oficina aberta por
muitos anos, mas nunca crescem além de um certo tamanho, bastante
reduzido. Esse processo é chamado de “prostituição” do profissional.
Uma
atitude lesiva muito comum desses mecânicos é se aproveitar da ausência
do cliente enquanto ele faz o serviço, e troca peças originais do carro
por peças já usadas, recuperadas ou de terceira linha. Quando essas
peças apresentarem defeito, ele vende para o cliente a peça original do
próprio carro.
Ele também pode aproveitar as peças originais do carro do cliente em seu carro particular ou em outro carro idêntico de outro cliente na oficina que tenha aquela peça defeituosa.
Na
outro extremo da escala do mau mecânico temos o mecânico explorador,
que não tem medo de colocar uma conta salgada na mão do cliente. Ele usa
e abusa de má fé da credulidade e da ignorância técnica do cliente.
Exemplo típico são as grandes redes de oficinas de pneus que praticam a chamada “empurroterapia” (reparos que na verdade não são necessários), o que é altamente lesivo ao consumidor.
O mecânico explorador e grandes orçamentos: par inseparável |
São sempre oficinas bem organizadas, limpas na medida do possível, com vários postos de trabalho lado a lado, cada qual com seu mecânico e seu ajudante, com um escritório onde o cliente pode esperar pelo serviço confortavelmente, sem incomodar os mecânicos. O visual é fator importante para impressionar o cliente, agindo como fator psicológico facilitador para a conta que virá.
Vejam como estes fatores atuam na psicologia do cliente.
Oficina limpa e organizada e bom tratamento não são sinônimos de oficina honesta, mas passa essa impressão. Maus mecânicos podem se aproveitar deste fator psicológico para tirar vantagem do cliente desavisado.
Existe todo tipo de técnica para garantir o serviço, desde o terrorismo sobre a segurança do veículo a até fazer toda desmontagem da suspensão do carro sem permissão prévia e constranger o cliente, obrigando-o a aceitar o serviço pago não solicitado ao invés de ele exigir a remontagem gratuita. O constrangimento envolve até o receio do cliente de que se ele exigir a remontagem, não seja deixado nada fora do lugar que prejudique o veículo.
Para quem estiver interessado, procure conhecer um pouco sobre engenharia social. É impressionante a quantidade de técnicas que podem ser usadas para que as pessoas ajam contra si mesmas sem que percebam.
Os dois tipos de maus mecânicos costumam também instalar peças de terceira linha, mas cobradas como de primeira. Muitos até mostram embalagens vazias de peças originais como prova que a peça instalada é de procedência.
Se essas peças resistirem pelo menos até o prazo de garantia, o lucro é todo da oficina.
Outro
truque muito usado em grandes orçamentos é cobrar pelo que não foi
feito e é difícil de verificar. Se o cliente teve um problema no motor
que exigiu sua desmontagem, como ele vai verificar que o aplainamento de
cabeçote e reassentamento de válvulas que foi cobrado realmente foi
feito depois do motor estar montado e funcionando?
Maus
mecânicos também cobram o serviço pelo carro e pela aparência do
cliente. Para um mesmo serviço, quanto mais caro e luxuoso o carro e
quanto melhor trajado estiver o cliente, mais cara a conta.
Ambos
os tipos de maus mecânicos são lesivos ao mercado de reparação, pois
trazem má fama a todo o setor, e deixa o cliente ainda mais inseguro
quando necessita de um serviço.
Mas
se eles são tão ruins para o ecossistema de reparação, por que eles
proliferam enquanto profissionais de referência, que cobram preços
justos praticamente são tão raros? Não deveria ser exatamente o
contrário, com o mercado filtrando e expurgando os maus profissionais?
Pois a palavra-chave que explica tudo é exatamente “ecossistema”.
Se o perfil do profissional que sobrevive nesse mercado é ruim, é porque o perfil do cliente também não é nada bom.
Maus mecânicos são resultado de maus clientes |
Não é possível que um negócio prospere com valores excessivamente baixos ou excessivamente altos sem a colaboração, mesmo que inconsciente, dos clientes.
O
profissional consciente trabalha dentro de uma margem de lucro limitada
sobre uma base de custo controlada, nem muito abaixo nem muito acima
disso.
Se
ha oficinas que cobram baixo bem pouco, não existe milagre. A qualidade
é proporcional ao preço. Preço inferior leva a serviço de qualidade
inferior, e quem tem um pingo de consciência que esse serviço inferior é
prestado em um veículo que transporta vidas, sabe que esse é um barato
que pode sair muito caro.
Apesar da baixíssima qualidade, o baixo preço dos serviços consegue atrair um público muito fiel e defensor desses mecânicos.
Ao escolher uma oficina apenas pelo preço e não pela relação custo-benefício, o cliente beneficia o mau e não o bom mecânco. Mas ele age pensando que leva vantagem nessa escolha.
Baixo custo, baixa qualidade do serviço |
Pelo lado dos mecânicos exploradores, reparem em um detalhe curioso: pergunte a quem já levou seu carro em qualquer uma das grandes redes de oficina, e quase certamente as mesmas técnicas de exploração predatória do cliente se revelarão.
Grandes redes só se estabelecem se a margem de lucro for significativa, e já vimos que não existe espaço para um lucro muito grande num serviço honesto.
As
pessoas instintivamente seguem líderes. Uma grande marca não se fez da
noite para o dia, e as pessoas acreditam que essas redes se fizeram em
cima de seu conhecimento e profissionalismo e acreditam piamente na
honestidade do lojista. Como elas entendem muito pouco do carro (e cada
vez se entende menos com a morte do entusiasmo pelo automóvel), o que o
autodenominado “especialista” da loja indicar elas acatam sem discutir.
Bons
profissionais não tiram proveito dessa fraqueza dos clientes por
questões éticas, mas quando o lucro envolvido pesa mais que a ética para
maus profissionais, o que vemos é uma exploração predatória dos
clientes.
Como a margem de lucro por serviço é baixa, então eles vendem muito serviço desnecessário para garantir um significativo lucro por carro reparado. É a “empurroterapia”.
Quanto
maior o lucro, maior o investimento em imagem e marketing, que traz
mais clientes, que traz mais lucros, que potencializa abrir mais lojas,
que traz mais lucros... É assim que a maioria das grandes redes se
forma.
Mas nada disso daria certo se o cliente não fosse tão inocente e passivo, colaborando com a própria exploração. Ao escolherem uma oficina apenas pelo renome e pela intensa presença de marketing, o cliente novamente pode estar beneficiando maus mecânicos em detrimento dos bons.
Não dá para dizer que todas as grandes redes praticam essas técnicas nefastas, mas quando entrar numa delas, é bom ficar atento.
Há outras atitudes negativas, vícios, que tornam maus os clientes.
Mecânicos
odeiam clientes "sabidos", que vão lá para puxar conversa, fuçarem
tudo, bagunçarem as peças de carros que nem são deles, darem palpites
sem conhecer mecânica, atrapalhando o mecânico que ali está para
trabalhar e garantir o faturamento do dia.
Esses clientes são mais comuns aos sábados, dia que em tese seria ótimo para o mecânico receber novos carros para reparar ao longo da semana.
Maus clientes infernizam o trabalho do mecânico |
Esses clientes são mais comuns aos sábados, dia que em tese seria ótimo para o mecânico receber novos carros para reparar ao longo da semana.
Muitos mecânicos preferem perder o melhor dia da semana e descansar a ter de tolerar esses clientes chatos e inconvenientes.
Há três vícios em especial que são devastadores para bons mecânicos.
O
primeiro vício ocorre com clientes que odeiam gastar com necessidade.
Todo gasto em necessidade é chorado, brigado, e se possível postergado,
jogado pra segundo plano até pelo menos ele se mostrar inevitável.
Porém, ofereça a esses clientes um luxo do agrado deles. Eles abrem a carteira sem nem perguntar quanto custa.
Um
exemplo clássico é o proprietário que coloca no lugar das rodas
originais um jogo de rodas de 20 polegadas, cromadas, cheio de estilo,
mas coloca pneus remold pro serviço final ficar mais barato.
Há
uma razão para isso. Luxo lida com o prazer, com a imagem social e a
sensação de recompensa das pessoas. Necessidade é um gasto que não
aparece e ainda toma recursos importantes pra consumir mais luxo.
Há quem até deixe a necessidade de lado só para sustentar seus luxos, pelo menos até o ponto em que isso se torna intolerável.
O
profissional de reparação oferece um serviço necessário, não de luxo, e
se ressente dessa diferença. É comum o mecânico pegar um carro equipado
com o que há de mais moderno e potente em termos de som e imagem,
tuning, turbo (que é luxo e não necessidade), mas cheio de problemas
porque a manutenção foi completamente esquecida (é necessidade e não
luxo). O cliente forçará de todas as formas o menor preço que conseguir,
apesar de fazer questão do carro ser perfeitamente reparado.
Este
primeiro vício comumente se liga ao segundo, o do “leilão” do serviço. O
cliente quer um serviço de qualidade, mas quer ele bem baratinho. Ele
sabe que o mecânico barato não tem capacidade técnica para realizar um
bom serviço, então ele vai até um bom mecânico, oferece o serviço, mas
diz que tem um outro mecânico com um preço bem mais em conta. E aí fica
forçando a situação, querendo que o mecânico faça um serviço no seu alto
padrão, mas cobrando o preço do mecânico barato. Não é uma situação
fácil para um mecânico, porque ele pode perder um serviço que pode
preencher a cota diária de serviços, mas é um serviço prestado com
prejuízo.
Ceder
ao cliente inconveniente é ruim, mas fica ainda pior quando ele
configura o próximo vício. Este refere-se a um ciclo que é perigoso em
qualquer esfera do relacionamento humano, conhecido como ciclo de
precedente-distorção.
O
ciclo de precedente-distorção ocorre quando existe uma regra rígida que
estabelece o relacionamento entre duas pessoas que é quebrada uma vez
por uma concessão de uma das partes. Essa concessão é o precedente que
enfraquece a regra, permitindo que ela seja contrariada novamente. Se a
regra for quebrada seguidas vezes, se estabelece uma relação onde a
regra original deixa de ser válida e sua desobediência passa a ser
rotineira, em benefício de quem se aproveita e em prejuízo de quem
concedeu. Essa quebra rotineira da regra que já não vale é a distorção
da relação.
O problema é que esse processo não recebe o nome de ciclo por acaso. Depois de estabelecida uma distorção é questão de tempo até uma nova concessão a uma outra regra ser forçada e abrir outra brecha para uma nova distorção, ou a distorção já estabelecida para uma pessoa ser usada como precedente para que outras pessoas usufruam dela também.
Se
quem fez a concessão agora quiser parar a distorção depois de
estabelecida e recompor a antiga regra vai encontrar forte oposição do
beneficiado, que acha que um direito adquirido seu foi violado. Mas
manter a relação distorcida também é intolerável para a parte que
cedeu.Isso normalmente leva a uma degradação da relação na qual ambas as
partes perdem.
Este
ciclo de precedente-distorção é capaz de minar qualquer cadeia de
autoridade e respeito, quer seja entre pai e filho, chefe e subordinado
etc..
É um ciclo sutil, mas extremamente perigoso e perverso e deve ser combatido em qualquer esfera do relacionamento humano antes que ele se estabeleça.
O
mesmo ocorre entre o mecânico e seu cliente. A regra que regula a
relação entre mecânico e cliente é bem clara: o mecânico faz o serviço
que o cliente quer e em contrapartida o cliente paga o valor devido pelo
serviço ao mecânico.
Se
o cliente faz um leilão de serviço uma vez e o mecânico aceita, o
cliente irá leiloar o serviço seguinte com um preço ainda mais baixo,
até chegar em um ponto em que esse cliente usufruirá automaticamente de
um grande desconto sem precisar sequer fazer o leilão.
Se esse cliente contar esse detalhe a um amigo, esse amigo pode desejar “pegar uma carona” no desconto que o cliente já possui, e agora, além do mecânico ter um novo cliente inconveniente, ele ainda se incomoda por não poder contrariar seu primeiro cliente.
Todas
essas atitudes atingem em cheio o bom mecânico, o honesto ou o
consciente, que se baseia em ética e moral profissionais, além de
valorização da relação sadia com seus clientes. Já os maus mecânicos são
imunes a esses maus hábitos dos clientes e proliferam.
Não
é agradável dizer, mas a verdade é que o mercado possui os mecânicos
que merece. Bons mecânicos proliferam em ambientes de cooperação e
simbiose com seus clientes.
Maus mecânicos proliferam em ambientes competitivos e predatórios entre eles e seus clientes.
Em países desenvolvidos, os prestadores de serviços, e entre eles os mecânicos, comumente são bons profissionais. Fazem serviços de qualidade e sabem que enganar o cliente é um passo para ter sua imagem arranhada, o que é ruim para os negócios.
Esses profissionais contam com uma boa casa, carro novo na garagem, e oferecem uma vida segura e confortável para sua família. Eles não precisam mentir para ter uma vida compensadora. Entretanto, o preço dos seus serviços é assustador para os nossos padrões, mas seus clientes entendem tudo isso que discutimos aqui e contratam seus serviços sem discutir.
Não somos nós, do Terceiro Mundo, que tanto invejamos os países do Primeiro Mundo, e queremos tanto chegar lá?
Pois chegar lá também significa admitir serviços caros, porém honestos.
Se
hoje reclamamos demais da falta de bons profissionais e da abundância
dos maus, coisa de país atrasado e sem cultura, é porque metade da culpa
é nossa enquanto maus clientes.
Se quisermos que esta situação mude para entrarmos no Primeiro Mundo, então precisamos começar mudando nossas atitudes perante eles, os prestadores de serviço, evitando os maus e premiando os realmente bons, e aprendendo a pagar o preço justo por serviços.
Sem isso, só podemos lamentar o triste destino da maioria dos bons mecânicos.
Mecânico honesto, RIP. |
AAD
Obs: Agradecimento especial ao amigo Fernando Furini pelas fotos do reparo da dobradiça.
Obs: Agradecimento especial ao amigo Fernando Furini pelas fotos do reparo da dobradiça.