segunda-feira, 28 de novembro de 2011

LATIN NCAP: A (IN)SEGURANÇA DOS CARROS NACIONAIS

Chevrolet Celta no teste da Latin NCAP

Ontem foram divulgados os resultados da segunda fase do Latin NCAP.

Para quem não conhece, o conceito de NCAP (New Car Assessment Program - Programa de Avaliação de Carros Novos) surgiu nos EUA, em 1979, como uma iniciativa da NHTSA (National Highway Traffic Safety Administration - Administração Nacional de Segurança de Trânsito), um órgão do governo dos EUA. Em 1997 foi a vez da Europa, com o Euro NCAP, uma associação independente financiada por governos da União Européia, fabricantes de veículos e outras organizações.

Nos anos 50, nos EUA, segurança era quase um palavrão: nenhum fabricante queria tocar no assunto. Naquele tempo, além de envolver custos (coisa de que nenhum fabricante gosta), segurança remetia os consumidores a pensamentos desagradáveis, incompatíveis com o sonho de liberdade que lhes era vendido junto com o automóvel: que eles podiam se acidentar e até morrer dentro de seus objetos de desejo, os carros. Era uma realidade em que ninguém queria pensar. Os fabricantes até tinham medo de equipar seus carros com cintos de segurança e os consumidores acharem que isso se devia ao fato de seus carros serem perigosos.

Em 1965, um jovem advogado chamado Ralph Nader lançou o livro "Unsafe at Any Speed" (Inseguro a qualquer velocidade), denunciando a falta de segurança dos automóveis produzidos nos EUA, com foco na instabiidade do Chevrolet Corvair, carro de motor traseiro e suspensão traseira por semi-eixos oscilantes. Isto causou um grande alvoroço na época, chamando a atenção para o inevitável: automóveis se acidentam, por mais que não queiramos que isto aconteça. Muitos debates ocorreram, houve muita resistência por parte dos fabricantes, que não queriam um aumento de custo, até que em 1979 a NHTSA determinou a criação do NCAP. Em 1997, os europeus abraçaram a idéia, criando o Euro NCAP.

Livro "Unsafe At Any Speed", de 1965

O objetivo do NCAP é testar a segurança dos veículos, nos acidentes, nos mercados em que atuam. São feitos testes de impacto (crash tests) nos veículos com sofisticados bonecos antropométricos (dummies, manequins) recheados de sensores e através deles são verificadas as lesões que os ocupantes do carro sofreriam em uma colisão. Os resultados depois são compilados e, dependendo do nível das lesões sofridas pelos bonecos, é dada uma nota em "estrelas", de 1 a 5, sendo 1 estrela o mais inseguro e 5 estrelas, o mais seguro.

Recentemente, em 2010, foi criado o Latin NCAP, para testar os carros mais vendidos na América Latina e Caribe. Até então, podíamos apenas ter uma idéia da segurança dos nossos carros quando eles tinham similares europeus ou americanos. Em outubro de 2010, saiu a primeira leva de carros testados: Toyota Corolla, Chevrolet Meriva, Fiat Palio, Volkswagen Gol, Peugeot 207. Os últimos três (Palio, Gol e 207) foram testados com e sem airbags. Ontem, saíram os resultados da segunda leva de carros testados pelo LatinNCAP: Chevrolet Celta, Chevrolet Classic, Ford Ka, Fiat Novo Uno, Nissan March, Nissan Tiida, Ford Focus e Chevrolet Cruze. O Tiida foi testado 2 vezes, uma delas com apenas 1 air bag (qual o propósito disso? o motorista se salva e o passageiro se lasca? Fazedor de viúvo (a)?) e outra com air bag duplo.

Compilamos aqui os resultados:

Chevrolet:
Celta (sem airbags): 1 estrela
Classic (sem airbags): 1 estrela
Cruze (com airbags): 4 estrelas
Meriva (com airbags): 3 estrelas

Fiat:
Novo Uno (sem airbags): 1 estrela
Palio (com airbags): 3 estrelas
Palio (sem airbags): 1 estrela

Ford:
Focus (com airbags): 4 estrelas
Ka (sem airbags): 1 estrela

Nissan:
March (com airbags): 2 estrelas
Tiida (com 1 airbag): 3 estrelas
Tiida (com 2 airbags): 4 estrelas

Peugeot:
207 (sem airbags): 1 estrela
207 (com airbags): 2 estrelas

Toyota:
Corolla (com airbags): 4 estrelas

VW:
Gol (sem airbag): 1 estrela
Gol (com airbag): 3 estrelas

Pelos resultados, fica fácil de perceber a importância do airbag: Nenhum carro sem ele conseguiu mais do que 1 estrela, a pior classificação. O Latin NCAP afirma que o custo de uma unidade de airbag é de menos de 50 dólares, mas os fabricantes cobram pelo menos 1.500 reais por ele, ou seja, o motivo de ele ser opcional ou nem estar disponível em muitos de nossos carros mais baratos é a pura ganância dos fabricantes.

Mas chama a atenção que só o airbag não resolve: March e 207, mesmo com airbags, ficaram nas 2 estrelas. Palio, Gol e Meriva, estacionaram nas 3. Porém o governo brasileiro insistiu que todos os veículos vendidos no Brasil a partir de 2014 devem ter airbag. Claramente, não é esta canetada que vai resolver o problema da insegurança de nossos carros, é necessário também que a estrutura deles resista à pancada. E a lei que obriga airbag não fala nada nisso...

Nissan March no teste da Latin NCAP

Nissan Micra no teste da Euro NCAP

De estranhar mesmo foi o fraco desempenho do March: Vendido na Europa como Nissan Micra, ele obteve lá 4 estrelas: esperava-se, portanto, que o "popular japonês" se saísse bem aqui. Ledo engano: aqui ele conseguiu apenas 2 estrelas, um dos piores resultados dentre os carros equipados com airbag. Fica a pergunta: Trata-se realmente do mesmo carro? Ou o March que vem para cá (nosso "primeiro popular japonês" é fabricado no México) tem algo a menos que o que é feito para a Europa? As fotos acima nos deixam esta dúvida. Acima, o teste do March, abaixo, o do Micra. Pode-se ver facilmente que a coluna dianteira do March cede consideravelmente mais que a do Micra. E coluna dianteira é essencial na estrutura da célula de sobrevivência, que é a parte que tem que sair intacta de um acidente.

Só se saíram bem os projetos mais novos, idênticos aos vendidos em países mais desenvolvidos, como Cruze (EUA), Focus (Europa), Tiida (EUA) e Corolla (EUA/Europa). Mas mesmo se saindo "bem", nenhum recebeu 5 estrelas. Nos EUA, o Cruze ganhou 5 estrelas e na Europa o Focus também recebeu a pontuação estrelar máxima.

Para piorar, parece que o teste por aqui é menos rigoroso, pois o Nissan Tiida, que nos EUA é vendido como Versa, obteve apenas 2 estrelas pelo NCAP da NHTSA, mas no Latin NCAP levou 4. Neste caso, os resultados são muito comparáveis, pois Tiida e Versa (nos EUA), que são o mesmo carro, saem da mesma fábrica em Aguascalientes, no México.

Os carros populares vendidos aqui têm a segurança similar à dos carros que eram vendidos na Europa há 20 anos. Não espanta isso: Classic e Celta derivam da plataforma 4200, surgida com o Corsa A de 1993. Assumindo que a plataforma tenha sido apenas reestilizada, sem que tenha havido reforços adicionais na estrutura, Classic e Celta seriam realmente carros com projetos dos anos 90. Os resultados que eles obtiveram no teste ajudam a aumentar a suspeita disso. O Ford Ka foi lançado na Europa em 1996 (pré-EuroNCAP), deriva da plataforma do Fiesta MK4, de 1995. Porém, a plataforma do Fiesta MK4 deriva do MK3, lançado em 1988, que por sua vez é uma versão com entreeixos alongado do MK2 de 1983, um facelift do MK1 de 1976. O Fiesta só foi totalmente renovado na sua 5ª geração na Europa, lançada em 2002, renovação que não chegou ao Ka.

Sempre se falou que o Mille seria inseguro por ser um projeto de 1984, porém, pelo que vimos, talvez ele não seja mais inseguro que seus concorrentes, que, debaixo de uma roupagem mais nova, carregam um DNA com a mesma idade do veterano Fiat.

A criação dos NCAP na Europa e nos EUA teve um grande impacto na segurança dos veículos nos anos seguintes à sua introdução. Como tornavam públicos quais veículos eram seguros e quais não eram, isto gerou uma corrida por segurança entre os fabricantes, que buscavam altas classificações no NCAP para não perderem consumidores que poderiam considerá-los mais inseguros que seus concorrentes. Infelizmente, vários de nossos carros vendidos atualmente têm suas origens em carros europeus anteriores ao Euro NCAP e por isso suas estruturas não se beneficiaram dos avanços em segurança implementados após a sua adoção. Nenhuma destas plataformas continua em produção atualmente na Europa. A plataforma 4200 abandonou o solo europeu em 2000, o Ka despediu-se em 2008.

Por tudo isto, chegamos à clara conclusão que os carros vendidos na América Latina ainda são muito mais inseguros que os vendidos no dito primeiro mundo. Nosso mercado ainda não é tão exigente a ponto de rejeitar carros mais inseguros, prova disso é que os grandes sucessos de venda no nosso mercado são justamente os carros mais baratos e sem airbag, que não conquistaram mais do que uma estrela.

O comentário do Latin NCAP sobre o Celta chega a ser alarmante: "A pontuação do Chevrolet Celta foi limitada a uma estrela pelo alto risco de morte. A carroceria não absorveu o impacto da colisão trazendo risco elevado de lesão frontal à cabeça do motorista. A proteção do tórax do motorista foi baixa, existindo estruturas perigosas na parte baixa do painel que poderiam comprometer os joelhos dos passageiros. Há um alto risco de lesão grave para a parte inferior da perna e do pé do motorista devido a ruptura do assoalho. A carroceria não resistiu à carga adicional.". Pode-se reparar, na primeira foto que ilustra o post, como a estrutura do Celta colapsou com a batida. Com aquela deformação toda, acredito que não se possa falar em célula de sobrevivência no Celta.

Como diz um amigo meu, segurança é como esgoto em bairro pobre: apesar de necessário, nenhum político quer fazer porque a obra fica embaixo da terra, portanto, ninguém vê e por isso não dá voto. Preferem fazer praças e pontes, que têm muito mais visibilidade. O mesmo acontece com a segurança: Nenhum fabricante quer reforçar a estrutura do carro, pois isso custa dinheiro e ninguém vê. Preferem colocar repetidores dos pisca-piscas nos retrovisores, pois os compradores gostam. Além disso, o brasileiro não tem o costume de comprar segurança: Prefere encher o carro de som e acessórios a exigir ABS e airbag. Ele já tem a desculpa para isso na ponta da língua: "Eu dirijo com cuidado e por isso não vou bater com o carro, não preciso de airbag".

Obviamente, ninguém compra carro para bater. O problema é que os acidentes insistem em continuar acontecendo. Como ocorreu com um colega de trabalho de um amigo meu em Brasília: Vinha ele dentro de seu Fox, a 80 km/h, a caminho do trabalho. No sentido contrário, vinha uma moça em um Gol a caminho do hospital tendo uma crise renal (quem já teve sabe que isso dói muito). Por um motivo ainda não apurado (seria o aumento da dor que lhe embotou os sentidos?), ela invadiu a pista contrária e bateu de frente com o Fox. Nenhum dos dois tinha saído de casa naquela manhã para bater com o carro, mas a motorista do Gol morreu e o motorista do Fox fraturou os dois braços e as duas pernas. Ele estava 100% certo, andando regularmente dentro do limite, como fazia todos os dias para ir ao trabalho. Seu único "pecado" foi não adivinhar que alguém na pista contrária poderia estar tendo uma crise renal, perder o controle e invadir a sua pista...

Acidente em Brasília. A motorista deste Gol morreu
O NCAP é uma forma de trazer à tona o assunto segurança, de forma a conscientizar o comprador da necessidade dela, para que aconteça aqui a mesma conscientização que houve nos países da Europa e nos EUA: Mesmo que fosse possível, hoje ninguém seria louco de tentar vender em qualquer destes países um carro que tivesse apenas 1 estrela no NCAP, pois os consumidores o rejeitariam de pronto: Americanos e europeus não aceitam mais carros que eles considerem inseguros.

Mesmo com todo o problema de falta de segurança rondando a indústria nacional, recentemente o governo majorou de forma protecionista o IPI, aumentando-o em 30 pontos porcentuais apenas para os carros importados que não o sejam do México ou da região do Mercosul, claramente objetivando colocar obstáculos para a importação de veículos. Quando fica notório que temos carros considerados abaixo da crítica para os padrões americanos e europeus, o que nosso governo faz? Estimula os fabricantes a melhorar nossos carros para que se igualem aos do primeiro mundo? Não, simplesmente dá um jeito de torná-los mais caros para nós, para que continuemos comprando os carros inseguros que nossos fabricantes oferecem! É esta a indústria que eles estão querendo proteger?

A idéia do aumento de IPI, apesar de ter sido muito mal recebida pela sociedade (menos pelos grandes fabricantes locais, que foi quem "encomendou" a majoração ao governo), foi calorosamente defendida pelo Ministro da Fazenda, Guido Mantega. Curiosamente, andando por Brasília, topei com o seguinte carro:


Carro oficial do Ministro da Fazenda

Na placa, pode-se ler claramente: "Ministro de Estado da Fazenda". É, portanto, o carro oficial de uso do Ministro da Fazenda, Guido Mantega. É um Ford Fusion, fabricado em 2008. Sua plataforma é relativamente atual, derivada da plataforma GG da Mazda, de 2002, que também lhe empresta a mecânica. É equipado com freios ABS e possui 6 airbags, 2 frontais, 2 laterais e 2 de cortina. Chega ao requinte de possuir um sensor de peso no banco do passageiro, que desliga o airbag no caso de ali sentar-se uma criança (airbags são perigosos para crianças). Há nele um dispositivo que soa caso o cinto de segurança do motorista ou do passageiro não estejam afivelados, tudo para garantir um alto nível de segurança para o motorista e para o passageiro dianteiro. Constata-se, pela foto abaixo, que ele se saiu muito bem no tesde de impacto, mantendo a estrutura da cabine de passageiros (célula de sobrevivência) intacta, muito diferente do que ocorreu com o Celta.

Teste de mpacto do Fusion na NHTSA

O Ford Fusion é um carro importado do México, mas construído neste país para ser exportado para os mercados americano e canadense. Nos testes da NHTSA, conseguiu a marca de 5 estrelas. Este é o carro em que o ministro anda, o mesmo ministro que determinou que devemos continuar a andar em carros inseguros para proteger os grandes fabricantes instalados no país. Ele faz questão de andar num carro 5 estrelas, enquanto dificulta que cidadãos de seu país tenham acesso a carros de mais de 1 estrela. Se ele é tão fervoroso defensor dos carros fabricados aqui, por que não dá sua contribuição, mandando o Ministério comprar um carro nacional? Por que não escolheu um Vectra, Civic, Corolla ou Linea? Ou, mais recentemente, um Cruze?

Talvez estes carros nacionais não sejam tão bons quanto o importado Fusion. Mas ele é feliz de poder escolher. Pena que a maioria do povo que paga a escolha dele não tenha a mesma felicidade, graças à majoração de 30 pontos no IPI, que ele defendeu com tanto fervor.

Ninguém compra carro para bater, mas se isso acontecer, é melhor que o carro dê a máxima chance de sair ileso. Carro se compra outro, já a vida, é uma só.

CMF

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